Jorge Salavisa: "Quando contei aos meus pais que dançava foi um escândalo, tudo a chorar"
A casa está cheia de obras de arte, pintura, escultura, móveis, livros, tudo num equilíbrio de esteta que não admite exageros. Nasceu na Maternidade Alfredo da Costa, em 1939, filho de um casal que, como diz no envolvente livro de memórias Dançar Uma Vida (ed. D. Quixote, 2012), era de uma "beleza elogiada por todos". Acompanhado pela algazarra festiva das irmãs, cresceu na vida mais livre de África, com os pais, e no tempo de estudos em Lisboa, em casa de uma tia. Tornou-se bailarino às escondidas e, rapidamente, entrou para a companhia do Marquês de Cuevas, em Paris, no início de uma carreira que o levou a todos os palcos. Seguiu-se a companhia de Rolan Petit, o Ballet National Populaire, com Jean Vilar, Maurice Jarre, Zizi Jeanmaire. Atravessou a Mancha para o London Festival Ballet, onde ficou 14 anos, em constantes digressões. Como tinha decidido, aos 35 anos deixou de ser bailarino e tornou-se mestre de bailado e assistente do diretor da companhia, até que em 1977 foi convidado para dirigir o Ballet Gulbenkian. Foi programador e diretor artístico na Lisboa 94 Capital da Cultura, professor no Conservatório de Dança e em companhias estrangeiras. Dirigiu a Companhia Nacional de Bailado e foi diretor artístico do Teatro São Luiz até decidir reformar-se em 2010. De tudo isto se fala no documentário Keep Going Jorge Salavisa que Marco Martins realizou em 2011. Um cancro agressivo interferiu na vida feita de beleza e fisicalidade, a ponto de tentar o suicídio duas vezes. Foi no Instituto Português de Oncologia de Lisboa que voltou ao gosto da vida que sempre lhe tinha dado asas.
O início da sua autobiografia, com as duas tentativas de suicídio, é um murro no estômago, mas faz-nos aderir, porque depois é um hino à vida.
Talvez. Acredito na vida só com qualidade. Sem qualidade, não merece a pena viver. Já fiz o testamento vital e acredito muito na eutanásia quando se chega a um período de uma doença muito grave sem cura. Com a maior naturalidade. Sei que isto pode ofender muitas pessoas, do ponto de vista religioso e ético. A minha mãe esteve doente anos e anos, a sofrer imenso. Um dia, depois de a visitarmos, telefonaram do hospital a dizer que ela tinha falecido. Lembro-me sempre da frase do meu pai: "Louvado seja Deus!"
Quando o Jorge esteve doente, não era uma situação terminal.
Mas não queria arrastar-me com um problema tão importante para a minha vida, não queria viver com isso. E depois verifiquei que estava a ser um bocadinho piegas quando me defrontei com o Instituto Português de Oncologia e com gente muito nova, raparigas lindíssimas com um lenço na cabeça, as pessoas todas com muita dignidade. Vi que estava a ser dramático de mais e que havia coisas para viver e para fazer. Foi uma limpeza interior. Percebi que estava com uma depressão. Não precisei de ir a um psiquiatra ou a um psicólogo. O IPO foi a revelação da coragem de muitas pessoas. Estava a queixar-me de quê? Pronto, acontece. Aconteceu. Tive de enfrentar.
Hoje vive de outra maneira?
Completamente . O que me perturbou foi o choque de ter um corpo que já não era o mesmo. A minha profissão foi sempre com o corpo. Portanto, o corpo, para mim, foi sempre importante, não por vaidade mas como um instrumento de trabalho e de uma pessoa se mexer e de estar bem.
Quando começou a ter a noção de que o corpo era a sua ferramenta de trabalho?
A partir do momento em que comecei a dançar percebi que dependia inteiramente do corpo, da saúde e do bem-estar. Os bailarinos não têm o mesmo rigor, ao nível de cuidados alimentares, que têm os desportistas quando se preparam para um período de competições. Para os bailarinos é a vida inteira, de manhã à noite. Mas o exercício é de tal maneira violento que a maior parte das pessoas não tem problemas de engordar, a maior parte ainda fuma. Mas corpo é importante para todos, no dia-a-dia, é o nosso instrumento para andar, para viver, para nos divertirmos, para dançar, para fazer amor. É vital. Há pessoas que nunca viveram a vida, que foram velhas a vida toda, e envelhecem com a maior tranquilidade, estão habituadas. Com os bailarinos é diferente. E no meu caso, que vivi tão intensamente, diverti-me tanto, fui sempre - e continuo a ser - tão novo... não quero ser ridículo, mas tudo o que é novo entusiasma-me. Envelhecer e perder a saúde foi difícil, foi uma traição. Mas agora encaro isso com um sorriso. Olho para o espelho e rio-me, porque o corpo que tenho hoje é de rir. Tinha um corpo firme, com uns abdominais e uns peitorais lindos, agora tudo treme.
Como é que chegou à dança?
Hoje odeio, mas antigamente o meu sonho era viajar, talvez por ter estado em África. Pensei ser diplomata ou arquiteto, mas sempre tive inclinação para coisas artísticas, até por influência da família. Os meus pais sempre se interessaram e tínhamos uma grande ligação muito aos meus tios Abílio Mattos e Silva, que trabalhava no São Carlos, e Maria José Salavisa. Tenho um bocado de vergonha de dizer, mas o meu primeiro disco era de árias do Mario Lanza, era o que havia em África, e eu ouvi-o até ficar riscado. Quando voltei para Portugal, vi óperas no São Carlos de pé.
Viu a Maria Callas?
Vi, em 1959. E vi o Boris Godunov com o Boris Christoff, e vi a Maria Caniglia na La Wally. Houve um período em que vieram cá companhias de bailado muito importantes, o Milorad Miskovich, a Yvette Chauviré, o [Maurice] Béjart. Fiquei deslumbrado com o José Limón e companhia, com o American Ballet Theater, o New York City Ballet. Comecei a pensar que esse era o meu caminho e que queria ser bailarino.
Nunca tinha feito ballet?
Comecei tardíssimo. Em Portugal havia a Margarida Abreu, que era uma escola amadora, com uma companhia amadora. Havia o Verde Gaio, também muito amador. De repente apareceu a Ana Mascolo a abrir um estúdio. Conheci--a através da Maria José Salavisa e fui perguntar-lhe se via alguma possibilidade de eu ter um físico para a dança. E ela disse que sim. Comecei, às escondidas, durante muito tempo.
Às escondidas da família?
Não ganhava coragem e um dia saiu-me, à mesa. Os meus pais estavam em África. Eu ouvia-me, a voz não saía de mim e eu a dizer - sempre fui muito muito teatreiro - com ar muito casual: "Sabem? Estou a fazer aulas com a Ana Mascolo." Escândalo enorme, tudo a chorar, a minha tia... Os meus pais, quando voltaram, disseram: "Se é isso que queres fazer, faz, mas não em Portugal, porque não há nada digno. Que o faças lá fora." Pagaram-me a viagem para ir com a Ana Mascolo para Paris e Londres. Tinha acabado o Liceu Francês, ia entrar para as Belas Artes, mas fiz um ano só de aulas com a Ana Mascolo. Depois fui para Paris e com um ano de dança fui contratado por uma das companhias mais profissionais do mundo, do Marquês de Cuevas.
Começou aí os seus 19 anos de bailarino fora de Portugal. Foi um tempo de trabalho sem descanso?
Contínuo, o dia de descanso era o domingo. Oito espetáculos por semana, entre escolas e teatros. Viajávamos sem parar, semana atrás de semana. E depois íamos atuar ao Extremo Oriente, pela Europa toda, pelo mundo inteiro. Estive numa companhia ainda mais pequena, o New London Ballet, com a Margot Fonteyn, e em três anos fizemos três vezes a América de uma ponta à outra. Um dia estávamos no Canadá, com neve até cá acima, outro dia estávamos em San Antonio, Texas, na piscina. E fizemos a América central toda, a América do Sul toda. Fizemos a África do Sul, o Egito, o Extremo Oriente todo, andámos por tudo o que era sítio. Andávamos com a mala atrás das costas.
Isso cria um microcosmos, a companhia é o vosso universo?
Nas companhias grandes, há a tendência de se formar grupos. O London Festival Ballet era uma companhia de seis ou sete pessoas. Com a Margot Fonteyn, oito. Havia uma convivência grande, íntima. A Margot Fonteyn era uma pessoa generosa. Na América, todos os dias ela era convidada para uma grande receção depois dos espetáculos. Na América, como em países civilizados, os espetáculos são às sete horas. E ela levava-nos sempre.
Portanto, aí, andavam bem alimentados.
Vi casas sumptuosas, ceias sumptuosas. Os diretores eram o André Prokovsky e a Galina Samsova, conhecidíssimos na altura, e eles gostavam de comer. Bem. Às vezes, chegávamos a essas casas fabulosas, mas os canapés não eram grande coisa, olhávamos uns para os outros e íamos embora. Uma vez, chego e vejo, no meio de uma mesa, um pote enorme de caviar, parecia caviar do Irão. Comemos milhares de dólares em caviar, que - eles eram especialistas - era o melhor que se pode imaginar. A empregada, toda fardada, disse: "Ai os senhores gostam disso? Vou buscar mais." Era muito divertido.
Ainda tem amigos desse tempo?
Quando voltei para Portugal envolvi-me de tal maneira que perdi muitos contactos.
No Ballet Gulbenkian?
Eu envolvo-me sempre. Na Gulbenkian ainda mantive contacto com a dança e, depois, na Companhia Nacional de Bailado também. Mas já foi há muitos anos e as pessoas envelhecem. Decidi que aos 60 deixava a dança para fazer outra coisa e, quando fui para o São Luiz, o meu foco mudou.
Foi sempre uma pessoa virada para o futuro, para abrir coisas novas.
Isso foi sempre um instinto meu, uma curiosidade. O futuro está ao nosso lado, é preciso vê-lo. As coisas estão em perpétua renovação. A nível tecnológico sou aselha, é um horror, quando vejo talento tenho uma curiosidade enorme. É também uma questão de estratégia. Quando cheguei à Gulbenkian, a companhia estava envelhecida e era preciso renovar a nível de elenco, a nível de personalidade da companhia, para ter uma personalidade própria, com coreógrafos próprios. Para não ser uma companhia igual às outras da Europa. E isso ficou provado nas tournées internacionais, em que a companhia foi aclamada muito mais do que as pessoas pensam. É incrível o sucesso que o Ballet Gulbenkian teve lá fora. E eram todos portugueses, com uma personalidade própria que vinha de terem começado na escola, no Ballet Gulbenkian e, a maior parte deles, comigo.
Abriu a porta a novos coreógrafos?
Muitos coreógrafos que ainda são cabeças de cartaz começaram no Ballet Gulbenkian: Olga Roriz, Clara Andermatt, Paulo Ribeiro, Vera Mantero. E na Companhia Nacional de Bailado também fiz esse trabalho, por exemplo com o Rui Lopes Graça. Sou bastante consciente das coisas de que sou ou não capaz. Sei que tenho bom senso e certo talento como programador. Isso faz parte de uma estratégia de programação, que é dar cor a uma companhia, dar o repertório, programar com uma antecedência muito grande. Um programador tem de ser profissional e, às vezes, pôr de parte o gosto pessoal. Tem de saber as pessoas que tem, o material que tem e, sobretudo, o espaço que tem. E para quem está a trabalhar: se está a trabalhar para a Gulbenkian ou para o Teatro de São Luiz, é diferente. Tem de se adaptar, não é uma fórmula. A Gulbenkian tem um auditório de 1300 lugares. Arrisquei muito, mas mantive ligação a coreógrafos muito conceituados, como o [Hans] van Manen, o [Louis] Falco, o [Jirí] Kylián, que me davam uma garantia para poder jogar num programa em que envolvia uma Olga ou uma Vera, fazia uma mistura. E fiz programas só com portugueses.
Margot Fonteyn ajudou-o a aprender a programar, como diz no livro e no documentário?
Fiz uma tournée com ela - Margot and Friends - e sentávamo-nos a fazer a programação. Ela tinha o sentido da dinâmica e da cor e do ritmo de um espetáculo. Não era tudo muito igual, tinha de ter altos e baixos, mais cor, menos cor. E musicalmente também é importante a conjugação.
Ela estava no palco mas tinha uma visão de conjunto?
Os bailarinos têm essa visão espacial.
A Margot foi muito importante na sua vida?
Foi. Quando comecei a privar com ela, parecia a rainha de Inglaterra, porque tinha um ar... Vestia muito bem, estava sempre chiquíssima, muito elegante. Quando íamos para a América, por exemplo, ela chegava ao avião, ia para a casa de banho, vestia umas calças impecáveis Yves Saint Laurent e uma blusazinha, e quando o avião estava mesmo a aterrar - às vezes, as hospedeiras ficavam desesperadas -, ia para a casa de banho, trocava--se, aparecia com o seu tailleur Chanel, o cabelo arranjado. Saía do avião e os fotógrafos caíam todos em cima dela: a grande vedeta tinha chegado! Já tinha uma certa idade mas tinha uma aura, um carisma enorme. E também uma certa humildade. Uma vez, quando eu já era professor, muito a medo fiz-lhe uma correção e ela foi logo buscar... E depois: "Ah Jorge, está muito melhor." Ainda tinha a ânsia de fazer as coisas melhor.
Outra pessoa que foi importante na sua vida: a Pina Bausch.
A Pina Bausch foi, por aquilo que ela representa. Tive a sorte de assistir a muita coisa que hoje se pensa que são grandes novidades e já as vi há dez mil anos. Havia em Londres o Lindsay Kemp, com espetáculos deslumbrantes, Pina Bausch antes da Pina Bausch. Sempre tive fascínio por aquela loucura de espetáculo, com mistura de dança, de teatro, de... Quando vi a Pina Bausch, foi a paixão imediata. Adorei todos os espetáculos dela, são coisas que te tocam e não sabes bem porquê, mas tocam de uma maneira incrível. O que aquela mulher consegue fazer, da comédia à crueldade... consegue mexer com as pessoas. E tudo com uma elegância, nada é vulgar, é tudo muito humano.
E ela correspondia a isso?
Sim, com aquele ar muito distante, muito vago mas nada vago, porque ela sabe exatamente o que quer.
Já o Nureyev não era a mesma coisa? Não gostou dele?
O Nureyev foi para a companhia onde eu estava, conheci-o logo no dia a seguir a ter fugido [da URSS] e emprestei-lhe roupa. Era um bailarino extraordinário, mas tornou-se uma caricatura dele próprio: muito exagerado, muito efeminado, muito maquilhado, tudo um grande exagero. E comecei a não gostar tanto. Não soube sair no momento certo. Graças a Deus, saí sempre nos momentos certos. Não quis maçar ninguém, não quis ficar a mais. Sempre disse que deixava a dança aos 35 anos e cumpri. E o Rudy dançou até tarde de mais. Era penoso de se ver. A Margot dançou até muito tarde mas ainda tinha uma magia inacreditável. E o Rudy ficou pesadão, já não saltava, não tinha o mesmo fulgor.
Também está ligado à Anne Teresa De Keersmaeker.
Ela começou a vir a Portugal, nos anos 80, com o Rosas danst Rosas, um fenómeno para todos. Veio depois à Gulbenkian com o Achterland e pediram um professor de clássico. Eu era o diretor artístico mas sempre fui professor e fui dar essa aula. Foi ao fim do dia, e quando cheguei não sabia o que fazer, porque era um mais torto do que o outro. Fala-se de corpos para dança: não havia um corpo, para mim, para dança. Começo a dar uma aula, daquelas divertidas - tinha um pianista fantástico -, muito dançada, e eles adoraram. À noite, quando os vi no palco, também fiquei fascinado.
Mas é preciso ter um corpo especial?
Não. Um dos meus bailarinos favoritos, um dos melhores bailarinos do mundo, foi o Fred Astaire. Ele dança como ninguém, é incrível o movimento daquele homem, e tem um corpo horroroso, é mal feito que se farta. O Kazuo Ohno também. É a questão do movimento, da qualidade do movimento, o carisma... Aquele lado mágico.
A técnica tem de lá estar?
É uma pergunta muito difícil, na dança, porque há um exagero muito grande. É como uma pessoa que não sabe nada de música sentar-se a um piano e começar a tocar. Ou num violino: só saem guinchos. Na dança, isso também pode acontecer, se não há técnica por trás. Há pessoas sem talento nenhum que abusam da aparente facilidade que a dança está a ter: abertura a corpos, qualquer pessoa pode dançar. Algumas pessoas conseguem, outras não, tout court.
A dança é um movimento natural?
É e não é. Há pessoas que têm uma qualidade de movimentos fabulosa e que não precisam de ter uma técnica. Mas a técnica também evoluiu. Vê-se na ginástica desportiva que as pessoas cada vez têm extensões mais altas, por exemplo. Os corpos, neste momento, são absolutamente incríveis. Há rapazes, na Companhia Nacional de Bailado, que há 30, 40 anos eram um fenómeno! Nem o Nureyev. Há uma evolução enorme no corpo humano. E depois há aquela coisa de ser ou não ser bailarino, e tem que ver com uma aura, vinda de dentro, com a personalidade. Qualquer coisa de muito misterioso. Aliás, somos todos muito misteriosos. Posso fumar?
Sim, claro. Não larga os cigarros?
Comecei a fumar em Paris, fumava Gitanes. Uma namorada que tive obrigava-me: "Jorge, fume. Ça fait un mec de toi".
E fez?
Não.
A sua vida sentimental foi atribulada, foi feliz?
Foi feliz. Foi diversificada. Tive grandes amores e tive, talvez, os corpos mais bonitos do mundo comigo. É como diz um amigo americano, mais velho do que eu: "Jorge, o que é que nós temos? Memories."
Tem uma caixa enorme de memórias, um baú gigantesco.
Mas não vivo delas. Nunca olho para trás.
Para escrever as memórias teve de olhar mesmo.
Quando saí do São Carlos - e eu trabalho desde os 19 anos -, tinha 71 anos, e pensei: "O que é que eu vou fazer?" Sentei-me nesta mesa e comecei a escrever as memórias à mão. Começou a sair bem, entusiasmei-me, e, depois, há uma coisa mágica que é o Google: uma pessoa tem uma hesitação, vai lá e encontra tudo.
Os seus pais chegaram a vê-lo dançar?
Sim, porque as companhias vinham sempre a Portugal. O meu pai viu menos, porque estava em África. Mas a minha mãe e as minhas irmãs viram-me. Até vim com o New London Ballet, com o Otelo, em que fazia o Iago, com muito sucesso.
A imprensa portuguesa ia à sua procura?
Sim. A primeira entrevista que tive na rádio foi com a Maria Leonor.
No São Luiz mudou não só o teatro como a vida daquela zona.
Quando vi o projeto do Jardim de Inverno, quando vi o lado físico e o lado de teatro da cidade, de repente, tive um sonho. E consegui fazer exatamente aquilo que sonhei: gente a entrar e a sair para ter num dia fado e noutro dia a Pina Bausch e concertos de Beethoven, uma variedade enorme. E comédia, bailes, literatura, coisas como "É a cultura, estúpido!". E uma atividade constante: ter uma coisa e depois acabava e vinha outra. Dar uma vida ao teatro, que as pessoas entrassem e saíssem, tivessem curiosidade de ver o que estava a acontecer. E ser muito aberto à cidade e a todas as disciplinas. No começo, as pessoas não perceberam. Nem a Maria Manuel Pinto Barbosa, que era a vereadora da Cultura, nem o Pedro Santana Lopes perceberam, no começo. Estive na iminência de sair, para entrar o Filipe La Féria. Nem os técnicos perceberam. Começaram a perceber lentamente. E o público também começou a perceber. Dava-me uma alegria enorme ver aquele teatro com vida!
"Tinha um corpo firme, com abdominais e peitorais lindos, agora tudo treme"
Quando foi responsável do Opart, mostrou preocupação com o Teatro Nacional de São Carlos. Como está agora?
O meu projeto, quando entrei em 2010, era acabar com o Opart em três anos, separar a Companhia Nacional de Bailado e o São Carlos, porque é uma aberração ter as duas coisas juntas. Gabriela Canavilhas decidiu fazer um agrupamento complementar de empresas, juntar o São Carlos, a Companhia Nacional de Bailado, o Dona Maria, o São João do Porto, a Cinemateca, e eu disse que não. Se fosse vaidoso, tinha dito que sim. O Carlos Quevedo, que é meu vizinho, até me disse: "Agora vais ser lo Marquês de Pombal de todos los teatros portugueses." Não aceitei. Era tudo muito vago, não se sabia o que se podia e não podia fazer. Propus fazer o Ano Wagner, o Ano Verdi e fechar o teatro para obras no final de 2013.
Fechar mesmo?
Sim, para fazer a reestruturação completa do teatro. Fala-se de reformas do Estado... aquilo é um escândalo! Recebe uma "indemnização compensatória" próxima dos 18 milhões para fazer aquele número de espetáculos? Não tem um diretor artístico. A alma de um teatro é o diretor artístico. É a diferença entre a Companhia Nacional de Bailado e o São Carlos: vê-se a programação excelente da Luísa Taveira, com um projeto a três anos e um projeto a um ano, enquanto o São Carlos faz a maior parte das coisas avulso. E o pior é que isto se passa dentro de um teatro fisicamente podre.
A palavra certa é podre?
Está podre, necessita urgentemente de obras, está um perigo do ponto de vista de segurança. Eu tenho vindo a alertar para isso. Há um documento feito pelo Paulo Prata Ramos que diz que aquilo está muito perigoso. É preciso conservar o palco original, porque é o único teatro que não teve obras. É do século XVIII, é um museu! Deviam guardar as coisas como estão, com o cordame, com aquele aparelho de metal para fazer trovoada - hoje carrega-se num botão e já está. Todas as madeiras, tudo aquilo é fabuloso. Devia ficar tudo, mas arranjar, modernizar, pôr varas elétricas, pois a que lá estão são ainda puxadas a contrapesos. A nível de eletricidade, a nível de segurança, a nível de tudo, está um perigo! Há papéis por tudo o que é sítio, lixo por tudo o que é sítio. Não sei se está melhor agora, mas eu tirei de lá muitas toneladas.
De papel?
Toneladas de papéis e de madeiras e disto e daqueloutro. Aquilo foi crescendo, crescendo, hoje há 400 trabalhadores, os técnicos têm horas extraordinárias a partir das seis... num teatro! Isso não existe em parte nenhuma do mundo, nem em Portugal. Por exemplo, transformaram casas de banho em gabinetes onde há quatro computadores ligados a uma ficha dos anos 40.
Não cria risco de incêndio?
Nem quero dizer essa palavra. Faz-me imensa impressão, porque é um teatro que adoro desde miúdo. É uma desorganização total a nível de espaço, segurança, regulamentos internos. Uma total falta de estratégia. Aquele teatro precisa urgentemente de ser repensado, desde a estrutura ao pessoal, aos horários, aos regulamentos internos. A minha prioridade não é sequer nomear um diretor artístico. É fechar e repensar aquele teatro. O São Carlos é o nosso primeiro grande teatro, lindíssimo, um dos mais bonitos da Europa.